quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Zevers, O Esquecido

Conto que obteve o 2º lugar no VI Concurso de Contos e Crônicas, da Unimep.

Zevers, O Esquecido

Era um dia de rotina dos Infernos. Pecadores nus tentavam esconder-se entre os vapores sulfúreos. Por trás das rochas, hordas demoníacas espreitavam, preparando o ataque. O chão, a ponto de liquefazer-se, queimava os pés descalços. Ao centro da grande caverna, instrumentos de tortura aguardavam suas vítimas.
 
Uma corneta recurva como um chifre emite o sinal tão esperado. Demônios lançam-se às almas perdidas que correm, caem, lutam ou simplesmente deixam-se estar imóveis, petrificadas de horror. Tridentes zunem, acertando seus alvos pelas costas. Garras afiadas arrastam os prisioneiros até as paredes de onde pendem grilhões. Iniciam-se as torturas. Gritos lancinantes ecoam. Estalam chicotes de aço.

Nem todos passam pelo suplício ao mesmo tempo. Alguns permanecem acorrentados observando com terror o que os aguarda e matando a sede com goles de chumbo derretido, servido em belas taças de pedra.

Em um canto do salão, um espelho oval reflete as metamorfoses de um ser indeciso. Zevers, o das grandes orelhas, transforma-se várias vezes, sem resolver-se. Ora é homem, ora é mulher, ora velho, jovem, belo, forte, frágil... Ensaia caretas de pavor, contorções de dor, gritos, gemidos, lamentações... Pensa até em ajoelhar-se e iniciar uma prece, uma súplica aos Céus. Não tem tempo. Uma tenaz em brasa puxa-o pela orelha.

-- Anda, Zevers! Atrasado como sempre! Escolha qualquer forma e junte-se aos pecadores.

Zevers novamente não tem tempo. A corneta recurva soa outra vez e toda a balbúrdia cessa.

-- Fim da primeira parte do exercício! Troquem de personagens e aguardem meu sinal! -- grita o instrutor que passa voando.

Grande correria em direção ao espelho. O grupo dos pecadores transforma-se em demônios apavorantes e a horda dos demônios torna-se um bando de pecadores apavorados.

Precisam superar-se. É a regra do treinamento. O Inferno está dividido em duas equipes que treinam todos os dias, invertendo papéis. Assim será até o Juízo Final, quando os verdadeiros condenados chegarão. Aí sim, os demônios serão somente demônios e cumprirão seus deveres.

Soa a corneta novamente e Zevers continua em frente ao espelho. Não sabe qual forma apavorante escolher. Um diabrete vermelho? Um monstro sem cabeça, com olhos na barriga? Uma serpente-salamandra? O problema de Zevers é o excesso de imaginação (além das orelhas grandes, é claro). Mesmo como crocodilo alado, as orelhas lá estão! Um crocodilo com orelhas daquele tamanho, só mesmo no Inferno!

Desiste do exercício. Retira-se do salão às escondidas. Está entediado e cheio de dúvidas. Será que os pecadores realmente virão algum dia? Há séculos que treinam e tentam. Sim, Zevers também é um espírito tentador. Conhece bem os homens. Já levou milhares de almas ao caminho da perdição. Mas será que haverá mesmo um julgamento? Será que seus esforços fazem sentido? Zevers é um demônio de pouquíssima fé.

Esgueira-se pelos corredores mal iluminados a procura de “seus aposentos”. Quer dormir. É um hábito humano do qual não abre mão. Adquiriu-o depois de perder a memória em uma batalha contra um espírito de luz. Zevers, o esquecido, era visto com certo respeito, pois enfrentar uma criatura celeste exigia coragem. Ele, porém, não se lembrava da luta.

Suas excentricidades não paravam por aí. Além de dormir e até sonhar, Zevers lia e dava ouvidos a tudo o que escutava. Agora, por exemplo, escutava passos a segui-lo. Parou. Os passos pararam. Decidiu voar e ouviu outras asas em seu encalço. Espiões, certamente!

-- O que vocês querem? -- berrou com falsa fúria.

O bater de asas afastou-se, os corredores ficaram vazios.

Desconfiavam dele e com razão. Ele era um conspirador, um dissidente entre dissidentes. Precisava disfarçar melhor. Foi à câmara do supervisor das atividades tentadoras, um arquidemônio curioso e detalhista, e, depois das formalidades de sempre, fez seu relatório:

-- Estimulei um conflito religioso no Oriente, instiguei a criação de novas armas biológicas, convenci os laboratórios que estavam a meu encargo a manter em segredo a cura de certas doenças a fim de continuarem vendendo remédios...

Continuou falando de massacres, crimes ambientais, corrupção, exploração da miséria... fatos verdadeiramente ocorridos com os humanos aos quais fora designado como tentador.

O arquidemônio chamou-o “o melhor espírito das trevas em termos de tentação, quase tão bom quanto o próprio Satã”. Zevers saiu orgulhoso. Era bom ser elogiado mesmo quando, ou melhor, especialmente quando não merecia. Aqueles pecados todos haviam acontecido, mas sem a interferência de qualquer demônio. Os homens tinham feito o que fariam de qualquer jeito, simplesmente porque eram estúpidos em seus ódios e interesses. Zevers desprezava a humanidade. Odiava-a. Queria poder exterminá-la antes que ela mesma o fizesse. Graças a ela, era obrigado a reconhecer sua inutilidade como tentador. E lá estava ele, um demônio inútil como os outros, uma existência sem sentido dedicada a tentações desnecessárias e à espera de um Juízo Final que talvez não viesse.

Pensando bem, ele duvidava da própria existência. Não se lembrava de Deus, de anjos, da queda e jamais vira Satã depois de perder a memória. Sabia, através dos homens, que havia outros infernos diferentes daquele: o inferno dos gregos, o inferno gelado e outros infernos quase esquecidos. Os homens eram tão maus que deveriam ter criado os demônios à sua imagem e semelhança. “Pensam-me, logo existo”, blasfemava Zevers cartesianamente, contra Céus e Infernos.

*          *          *

-- Acabamos de ver Zevers, o esquecido, saindo do Inferno sem autorização. Ele levava uma sacola negra. Devemos prendê-lo? -- perguntou um dos guardas ao arquidemônio.

*          *          *

Da igreja inacabada restavam três paredes a ponto de desabar. Zevers ajeitou um altar com as pedras do chão, cobriu-o com um pano branco, tirou dois vasos da sacola que trouxera e lamentou não ter conseguido flores. Bem que tentara apanhá-las pelo caminho, mas suas mãos faziam-nas murchar. Encheu os vasos com mato seco e achou-os até bonitos para enfeitar seu ritual. Acendeu velas brancas e, toque final, colocou sobre o altar sua obra-prima: um livro ricamente encadernado em cuja capa rebrilhava a palavra “Bíblia”. Beijou-o solenemente, mas preferiu deixá-lo fechado, pois as páginas estavam em branco. Tentara roubar uma Bíblia verdadeira, mas todas feriram-lhe as mãos como espinhos.

Ajoelhou-se, começou a rezar. As preces saiam de trás para a frente. Desesperou-se, precisava falar com Deus. Gritou:

-- Sei que está me ouvindo, fale comigo!

-- O universo todo está te ouvindo, Zevers. Para que tanto barulho? O que pensa que está fazendo? -- perguntou o arquidemônio aparecendo de repente.

Zevers tremeu. Como explicar-se? A verdade, talvez?

-- Olá, é um ritual de missa branca, como pode ver. Calma, escuta! Quero falar com Deus. É, falar com Deus. Preciso de respostas. Você sabia que existem outros infernos além do nosso?

-- Todos sabemos disso, seu desmemoriado! Se tem dúvidas, por que não pergunta a mim ou pede uma audiência a Satã?

-- Porque eu acho que Satã também não sabe.

Zevers perdeu a pouca prudência que lhe restava. Disse ao arquidemônio que, muitas vezes, ouvira Satã chorar de saudade de Deus. Disse que ouvira-o suplicar perdão em voz baixa e jurar vingança aos berros, porque não era atendido.

Um raio fulminou o altar e Satã, furioso, surgiu flamejante acompanhado por uma legião armada.

-- Amarrem o traidor mentiroso! -- ordenou.

Zevers foi preso sem opor resistência. A um sinal de Satã, os demônios partiram.

-- Mentindo sobre mim novamente, não é, Zevers?

-- Tende piedade, Satã, de minha atroz miséria! -- suplicou Zevers baudelairiano. -- Eu queria apenas falar com Deus.

-- Deus está morto, seu idiota! -- urrou Satã.

-- Não acredito! De jeito nenhum! Oh, desculpe-me, mas... Bem... nesse caso... -- disse Zevers aturdido -- que mal há em eu querer falar com Ele? Deixe-me tentar e, se ninguém responder, saberei que Ele morreu. Pensando bem, grande Satã, se nós dois tentarmos juntos, poderemos ter mais certeza ainda. Venha, rezar comigo. Venha!

-- Como se atreve a tentar-me!?

Satã bateu palmas e o arquidemônio retornou voando com uma enorme ânfora cheia d’água.

-- Despeje sobre o traidor! -- ordenou Satã.

-- Esperem! O que tem aí dentro? -- gritou Zevers.

-- Apenas água. Água do inferno grego. Você não é especialista em outros infernos diferentes do nosso? Então deve saber quais são os rios do inferno de Cérbero. Vamos, diga quais são! Diga os nomes. Eu te ordeno!

-- Aqueronte, Flegetonte... Cocito... Estige... -- balbuciou Zevers.

-- Esqueceu o mais interessante: o rio Letes, o rio do esquecimento.

A água caiu sobre Zevers que mal teve tempo de gritar e desmaiou. O arquidemônio desamarrou-o e transportou-o com cuidado, pelos ares, de volta ao inferno. O Príncipe das Trevas ficou só. Sabia que, por alguns séculos, nada teria a temer. Zevers perdera a memória e fora esquecido novamente. Acordaria rodeado por demônios dos quais não se lembrava e que também não se lembravam dele. Levaria tempo até reorganizar seus pensamentos subversivos e atrever-se a tentá-lo outra vez. Sim, ele certamente voltaria a tentá-lo porque era o único capaz de ouvir seu choro de saudade a qualquer distância.

-- Pronto, meu Príncipe! -- disse o arquidemônio, retornando. -- O esquecido está entregue. Repeti a história da luta entre ele e um anjo de luz.

“História verdadeira”, pensou Satã, orgulhoso. “Sou o maior anjo de luz que jamais existiu”.

10 comentários:

  1. Essa estrutura circular e infinita, de Ourobouros, é incrível. Não esperava o final de forma alguma.

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  2. Olá Carla Ceres, desejo que tudo esteja bem contigo!
    Apesar de “demoníaco” é um belo e envolvente texto. Além do que é um texto premiado. Parabéns pela premiação deste ótimo texto!
    A verdade é sempre a mesmo, a ganância pelo poder, e o próprio poder em mãos inescrupulosas, ou mesmo exercido por mentes distorcidas, é deveras nefasto e devastador!
    Parabéns por belo texto Carla, desejo tudo de bom pra você e todos ao redor sempre, grande abraço e até mais!

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  3. ESPETACULAR ESPELHO DA CONDIÇÃO NEFASTA DO PODER, GANÂNCIA E VAIDADE!! PARABÉNS QUERIDA AMIGA!! Bj Mel

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  4. Parabéns minha linda amiga!!!! quanto orgulho!!!
    Caiu como "luva" para os nossos tempos!!!!
    bjs
    Mara Bombo

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  5. Carla, vi seu comentário que relatava ter perdido seguidores no twitter por conta do texto. Acho que a pessoa se ofendeu por ter se sentido retratada, não é possível que tenha sido por motivos religiosos.
    Beijos

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  6. Eita mulher premiada, gente!!!

    E que cabeça pra "inventar" histórias, viu? Parabéns, mesmo atrasado, você sabe que estou na correria, né?

    Beijão!

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  7. ocelo domingos pereira filho4 de dezembro de 2010 às 11:18

    De fato, a mitologia greco-romana é encantadora e um tema sempre cadente. Parabéns à autora do conto. Ocelo, mestrando em educação pela UNIMEP-Piracicaba.

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  8. Carla,
    seu conto não só me divertiu com as atribulações desse demônio existencialista, como me proporcionou um verdadeiro prazer do texto.

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  9. Puta Merda, Carla!!!!!

    Ficou em segundo lugar esde conto? O primeiro foi escrito pelo próprio Dante?

    Fiquei apaixonada. Que trama delicuisa e como está impecável a sua escrita.
    Parabéns. Vou ler novamente!!!!

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