quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Cristaleira

Quem nunca roubou doces atire, pra cá, o primeiro bombocado!

Cristaleira

Divindade inexorável,
A cristaleira da sala
Guardava porta-retratos
Dos quais ancestrais me olhavam.
Gente que, fora da foto,
Vivia menos altiva
Parecia reprovar-me.

Arrogante cristaleira
Cheia de taças compridas
Que a ninguém interessavam
Guardava, ainda por cima,
Bem lá em cima, na verdade,
Um grande pote de doces
Que eu ganharia se fosse
Um doce por não roubá-los.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Pó de Broca

Fazia dez anos que Eulália pensava em livrar-se do sítio. Aquele lugar de má sorte estava acabando com sua família. Seus filhos viviam doentes. Os vizinhos ajudavam como podiam, mas gostavam de fazer piadas, dizendo que o mal era preguiça.

Na semana em que seu neto mais velho morreu de “doença ruim”, Eulália soube que um hotel de luxo pretendia adquirir terras na região. Os proprietários locais enfileiravam-se para falar com o administrador do projeto e oferecer-lhe seus imóveis. Desesperada para salvar os netos restantes, Eulália resolveu furar a fila. Em seus sessenta anos de muita luta e pouco estudo, aprendera que “gente importante gosta de papel”. Escreveu:

Senhor gerente do HOTEL

Meu nome é Eulália ao seu dispor e tenho um sítio lindo pra vender. Ele é bem grande e tem muito mato atlântico que dá pra botar abaixo com machado ou tacando fogo. Tem bicho pequeno bom de caçar. Onça eu garanto que não tem mais. Meu falecido acabou com a última. O cafezal tá judiado, mas, se o senhor fizer gosto em continuar a plantação, pode ficar com todo o pó de broca do nosso depósito. É um veneno tão bom que o governo não deixa mais vender. Quem tem esconde porque vale ouro, mas o senhor pode ficar com ele junto com o sítio. Pergunte de mim na farmácia do Juca que eles mostram onde eu moro.

Sua criada Eulália Braga

O hotel comprou o sítio por uma ninharia quando Eulália soube que seu cancerígeno depósito de BHC não era tão bom quanto parecia. O “mato atlântico” e seus bichos à beira da extinção foram preservados e atraem ônibus de turistas.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Calendário


Tem saúva na folhinha,
Sobre a mesa do café.
Passou pelo mês passado,
Parou no dia de hoje,
Seguiu sobre o mês que vem.

Depois desfez seu caminho,
Zanzou por tempos confusos
E desceu do calendário.

Em breve, serão dezenas
De formigas viajando
Pelas páginas de tempo,
Colhendo cada farelo
De pão doce derrubado.

Mais insetos trabalhando
Sobre as sobras que deixamos
Ao planejar o futuro
Comendo o presente às pressas,
Por cima do calendário.